Dois persongens, duas expressões e uma punhalada na honra e dignidade dos mineiros.
“O Médico e o Monstro” é um clássico inglês da literatura mundial, publicado em 1886, que narra o fenômeno da dupla personalidade de seus personagens, Dr. Jekyll e Mr. Hyde. O romance do escocês Robert Louis Stevenson foi tão impactante que “jekyll and hyde” tornou-se um jargão para indicar pessoas que agem de forma convenientemente diferente dependendo da situação.
Isto posto, fiquei literalmente chocado com duas manchetes desta semana sobre a pandemia, protagonizadas por personagens mineiros, que remeteu-me ao romance.
A primeira, “Infectologista diz que UTIs estão cheias de quem confiou nos remédios indicados pelo governo: “Kit ilusão”, foi estampada com destaque no site da Rádio Itatiaia de BH. Com que autoridade este senhor refere-se ao tratamento precoce como “Kit Ilusão”? Se não há comprovação científica sobre a sua eficácia através de ensaio clínico randomizado, placebo-controlado, com cegamento de pacientes e avaliadores e com número e poder suficientes para estreitar os intervalos de confiança como requer a ciência ortodoxa, tampouco há comprovação sobre sua ineficácia.
Sobram as “Observações Clínicas” sobre ação e efetividade do “Kit Ilusão”, mundo afora. Pra quem não sabe, “Observação Clínica” é medicina séria. Foi assim com a Penicilina, com o Viagra, com a Espironalactona, com a Finasterida e tantos outros fármacos que se revelaram competentes para muito além de suas propostas terapêuticas iniciais e totalmente aceitos na comunidade científica internacional.
Eu e minha filha, também médica, fomos acometidos pelo micróbio da China e nos tratamos precocemente com o “Kit Ilusão” e já no 3º dia não tínhamos mais qualquer sintoma. Esse fato se repetiu, repete e repetirá no Brasil dos responsáveis. O fato desse senhor não acreditar não lhe dá o direito de falar como se dono da verdade fosse, muito menos desrespeitar seus pares como se esses fossem imbecis desavisados. Este senhor, como tantos outros, infelizmente, não está conseguindo ao menos abrandar o problema. Divide a autoria de medidas autoritárias do fecha-tudo, estas sim comprovadamente ineficientes até mesmo pela OMS sob a falsa ideia de proteger vidas cada vez mais desesperançadas, desempregadas e famintas.
Estamos numa guerra muito mais política do que sanitária. Se nos faltam fuzis e granadas para um efetivo combate ao vírus, paus e pedras fazem a honra da batalha. Sou médico há 40 anos, 35 deles no “front” e toda vez que tínhamos 10% de leitos de UTI disponíveis era motivo de comemoração. Portanto, essa antiga carência é fruto da incompetência administrativa crônica de gestores públicos de saúde. Não culpemos a pandemia.
Não posso admitir ser tachado de “ilusionista” da saúde. Sou médico na acepção de sua grandeza. Sinto-me ofendido e tomo as dores de milhares de colegas que não aceitam esse intolerável desrespeito ao contraditório científico num flagrante autoritarismo, típico dos impotentes diante dos desafios que não dão conta de resolver.
De volta ao “Kit Ilusão”, deixo aqui o pensamento de Louis Pasteur, um dos maiores cientistas e microbiologistas do mundo desde sempre. “O acaso na medicina só favorece aos espíritos preparados e não prescinde da observação”.
”Zema tacha de assassino quem sai às ruas na pandemia sem necessidade”, estampa o “Estado de Minas”. Confesso que um misto de tristeza e decepção abateu-se sobre mim. Que mudança “jekyll and hyde” de pensamento, meu caro governador! Quem baliza a necessidade? A fome? O desemprego? O desespero? É assassino quem busca o pão para um filho faminto? Leia a história de Minas, governador, e tente se emocionar com Tancredo quando reafirmou aos mineiros, em 15/3/1983, que “O primeiro compromisso de Minas é com a liberdade”.
Não somos assassinos, Excelência. Apenas um povo ordeiro, lutador, pacífico mas, nem tanto, quando a “Liberdade ainda que tardia” está minimamente ameaçada.
Lamentável! Ou imperdoável? Acho que não. Ainda confio muito no seu bom senso, caro governador!