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Sábado à tarde, toca o telefone:
— “Dr. Leão, é a Yara. Meu marido cortou-se feio na mão e precisamos do senhor”.
Confesso: há anos não atendia uma urgência. Mas em meia hora já estávamos na Sala de Pequenos Procedimentos do Mater Dei — que de “pequeno” só tem o nome, porque quem está na maca acha sempre que está em Grey’s Anatomy.
Lá estava o Ney: suando como se tivesse acabado de fugir de uma horda de zumbis. Tentava bancar o machão, mas entregou a rapadura quando pediu que Yara ficasse de mãos dadas com ele. A mão boa, claro. Eis aí o retrato fiel do sexo forte: valentes até a primeira gota de sangue.
Descobri que o corte tinha sido obra de uma faca que, pelo relato, lembrava mais uma espada de Jedi. A ferida era extensa, profunda e bem irregular — típica de chef de fim de semana que acredita que cozinha é episódio de Master Chef, mas sem a parte de seguro de saúde. Felizmente, nenhum tendão ou nervo foi atingido. Só o ego masculino mesmo.
Enquanto eu preparava o bisturi para “embelezar” as bordas da ferida e garantir uma sutura decente, Yara me observava em silêncio. Yara, que não é apenas esposa do paciente, mas uma escritora e cronista de escol — dessas raras intelectuais que dão vontade de ouvir por horas, de tão sensata, lúcida e bem humorada.
Yara não piscava. Prestava mais atenção que coruja em noite estrelada. Foi então que, entre bisturis e pinças, ela disparou uma frase que vale um tratado de filosofia:
— “Doutor, vendo o senhor cortar, queimar essas veias sangrantes, retirar pedaços de pele com toda frieza, semblante inalterado e até uma certa indiferença… eu chego à conclusão de que o cirurgião é uma espécie de “assassino” que se sublimou.”
Pronto! Pausa dramática. Eu quase soltei a pinça e porta-agulhas, tamanho foi o impacto dessa observação. Enquanto eu costurava a mão do Ney, Yara já costurava uma tese. E de humor e profundidade misturados, coisa que só grandes intelectuais conseguem fazer.
De fato, cirurgia é uma agressão: cortamos, arrancamos, queimamos, amputamos. Até aqui, nada diferente do Jack, o Estripador. Mas é na tal da sublimação que mora o segredo. Sublimar é transformar a fúria do corte em arte, técnica e vocação. É passar do impulso de destruir para o dom de reconstruir.
Sublimar é altear-se à culminância da dignidade, da grandeza, da honra, do conhecimento. É enaltecer-se e glorificar-se do dom que Deus nos concede para os desafios que a arte cirúrgica nos impõe.
No fim, segundo à intelectualidade filosófica, ser cirurgião é isso: um potencial agressor que escolheu o caminho da luz — não o lado negro da força (apesar da espada Jedi do Ney).
Aos filósofos de plantão, ser cirurgião é mais que uma opção. É uma vocação irresistível! Significa ir além da excelência técnica, adotando uma abordagem humanística que reconhece a singularidade do paciente, buscando o seu bem-estar holístico que abrange não apenas a doença, mas o ser humano como um todo.
E cá entre nós, minha querida Yara: talvez você tenha resumido melhor que qualquer manual de cirurgia. Nós, cirurgiões, podemos até ser uma espécie de “assassinos”… mas sublimes. Com CRM e jaleco esterilizado.
Parabéns pela crônica, belíssima forma de transmiti-la. Cômica e profunda, me emocionei!
– Cecilia Stocco
Excelente Cadu! Como sempre, colocando seu toque de humor sarcástico em cada detalhe! Parabéns!
Cido Carvalho
👏🏼👏🏼👏🏼 muito bem escrito e de fato uma observação profunda e pertinente da nossa profissão
Caio Basto
Prezado Leão
Super bacana a história, e o texto ainda mais.
Esses encontros e memórias com os pacientes são os que ficam pra sempre.
Em breve devo encontrar o “Nirvana” da sublimação…operar a própria esposa 💫
Depois te conto como foi…mas será um sucesso, tenho certeza.
Abração, boa semana
Sensacional!
👏👏👏👏👏
Crônica maravilhosa! 👏👏👏👏
Ticiano Cló
Parabéns CADU pela bela crônica.!!!
Luís Alberto Leite
Ola Cadu. E isso. Embora já afastado desta funcao, nso me esqueco dos momentos que, felizmente, sempre terminaram bem. Aprendizado. Compartilhamento.Acolhimento.E mestres eternos que sabemos quem sao. Vale muito a pena!
Abraco
Julio Pinheiro
Mais uma exelente crônica Cadu ! . Parabéns . Abraços , Nina.
Boa tarde Cadu, tudo bem?
Excelente, conseguiu traduzir com simplicidade a ação sublime e complexa de operar outro ser humano.
André Giannini
Yara foi cruel , poderia ser mais humana ,:”um açougueiro sublimado “
Bela crônica , parabéns !😄
Mais uma ótima crônica de nosso mestre das palavras. Uma pincelada no que somos e como somos vistos.
Henrique
Amei! Feliz em me incluir na classe 😍
Luiza
Cadu para a ABL! Já!
Rômulo Mene
Que texto incrível!!! Parabéns pelas palavras e obrigada por compartilhar! 😍
Anna Cecilia Andriolo
Excelente como sempre, Cadu. Parabéns!
Marco Barusco
Excelente texto meu amigo .
Bom domingo
Abração
Menegazzo
Excelente texto Cadu . 👏👏👏
Concordo plenamente! Mas para sermos esses ‘assassinos sublimes’, dá trabalho: são anos de treinamento, dedicação e noites em claro.
Cadu , cirurgião elegante não só como tal ; observador , ouvidor, e quando escreve escolhe a palavra certa , esculpe cada frase com maestria . Bela crônica gostosa de ler e refletir sobre o que somos como cirurgiões .
Mais um excelente texto. Parabéns, Cadu.
👏👏👏👏👏👏
Walter Pereira
Perfeito! Estou com a Yara e fim de papo.
Rey Figueiredo
Caro Cadu
“Prestar mais atenção que coruja em Céu Estrelado ”
Sou seu primeiro fã ,pois sua maestria com as palavras se equivale aos Vivaldis que dao vida e Graça as notas soltas, com melodias que por encantar a todos os imortaliza.
Parabéns e muito obrigado.
Dilson Luz
Ótimo, meu querido amigo!!
Mais um para a coleção!!!!
Múcio Leão
Eta Cadu, mais uma das suas brilhantes crônicas.
Vivi isto quando você cuidou de um ferimento da Camila minha filha, porém como você bem sabe, não tive coragem de ver o procedimento cirúrgico
Bhering
Parabéns! Linda crônica.
Maravilhoso texto, é coisa de louco 😂
Sensacional!
Eduardo Lintz
👏👏👏👏👏 bela crônica , Leão
Chico
Cadu
Vc tem o dom da palavra Deus textos são muito bons parabéns meu amigo 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼
Jorge Luís Abel
Vc continua o mesmo . Um sábio com altíssimo poder de informação . Um gênio que já veio pronto .
Sebastião Nelson
Abençoados cirurgiões!!!!
Adorei!!!
Gisa
Cadu, filosofando em “hi-fi”!👏🏻👏🏻👏🏻
Sérgio Moreira da Costa
Muito boa crônica, digna de um mestre do corte e da caneta!
Henrique Radwanski
Rica e justa homenagem ao encargo, dentre outros essenciais ao ser humano, que tornam singularares os herdeiros de Hipócrates.
Antonio Roberto
Ótima!
Federico Fellini disse:”O médico usa máscara para esconder o rosto e luva para não deixar impressão digital”😁😄
José Carlos Bruno
Um interessante ponto de vista. Embora, para mim, o que radicalmente nos diferencie do Jack seja o propósito. Mas as ferramentas, muitas vezes são as mesmas – em evolução crescente com a cirurgia minimamente invasiva. Mas aí já dá outra crônica. Ótima reflexão Cadu! Obrigada por compartilhar.
Sinara Leite
👏Essa história está genial! Adorei! Parabéns pelo empenho.
Abraços! Roberto Vieira
Cadu
Você está cada vez melhor
Se supera a cada crônica, navegando no abstrato
GenialL
Daher
Cadu
Você está cada vez melhor
Se supera a cada crônica, navegando no abstrato
Genial
Daher
Excelente!!!!!
Boa Cadu!!
Caro Amigo Cadu, mais uma vez Vc nos brinda com um texto sensacional , pois consegue extrair de uma cena do cotidiano de todos nós cirurgiões , a de atender e reparar uma lesão de pele, ou as mais profundas no meu caso por ser Cirurgião Geral, um ensinamento sobre a nossa natureza enquanto médicos, e particularmente enquanto cirurgiões , descrita de maneira igualmente sublime por Georg Groddeck , médico alemão é considerado o pai da medicina psicossomática , no seu “O Livro D’Isso”, leitura que ouso recomendar para todos os que, assim como eu , apreciam até no âmago esta questão tão séria quanto sublime ( tanto que é aludida com o termo sublimar !) acerca do entendimento daquilo que possibilita a um ser humano, nas palavras de Gilberto Gil , a se propor a fazer de sua vida, de sua profissão , uma missão cujo lema é “sabe lá o que é não ter, e ter que ter para dar , sabe lá”…
Parabéns caro e sublime Amigo ! Sigamos juntos
Excelente crônica!!!
Muito bom esta descrição com um toque de humor, mal leve, um abraço Cadu, bom domingo.😊
Parabéns, querido Leão. Texto que enaltece a arte e ciência na sensibilidade demonstrada por nós cirurgiões e que encanta olhares e imaginações de quem sabe nos valorizar. Forte abraço. Ailton de Araújo Cerqueira. Feliz domingo. Continue sendo um leão diferente, por saber fazer o bem.
Ela tem razão!
É o lado A o cirurgião! A luz!
Ótimo texto!
Bom dia
Belo texto e bem interessante a comparação da Sra. Yara!!
Que o Ney se recupere bem.
Excelente domingo!!
José Armando
Bom dia Carlos!
Lembra da frase: “cirurgiões são indivíduos que induzem mutilações a seus semelhantes, com pretensões terapêuticas “.
Pois é, há uns 20 anos atrás, meu sobrinho foi operado de meia dúzia de malformações cardíacas pelos irmãos Jatene no HCor, São Paulo. E após o término, o Marcelo Jatene nos recebeu em uma sala e ia tentando explicar a cirurgia aos pais, a avó, uma tia e a mim , quando intervi: doutor, o que o senhor quer dizer é que na falta de um coração ano e modelo 1985 de reposição, o senhor fez um monte de gambiarras que espera funcionarem perfeitamente! — ele imediatamente agradeceu e disse: muito obrigado amigo, você também é cirurgião e me poupou daqui pra frente de muitos rodeios… Pois é isso exatamente o que fazemos e essa será a minha explicação de hoje em diante!
E o Fritz está muito bem desde então, atualmente concluiu o mestrado em Haia e vamos visitá-lo em duas semanas.
Ps. E o nosso flu hein? Tropeçou feio em Bragança… Lamentável para um dos quatro melhores times do mundo! KKKK, abraço e bom domingo para vocês, desde aqui da fronteira de Minas Gerais… Baixo Guandu.
Dan Mendonça
Meu amigo. Coisa semelhante aconteceu comigo quando, sem a ver e literária que descreve é claro. Certa vez um marido de uma paciente que havia realizado uma cirurgia de face saiu com a seguinte frase:
Dr, vcs cirurgiões são verdadeiros psicopatas do bem.
Refeito do susto fui obrigado a concordar com ele.
Valeu!!! 💚❤️
Benjamin
Excelente texto!
Além de psiquiatras com o bisturi na mão, os cirurgiões plásticos possuem o “ímpeto” do meliante citado, todavia voltado para o bem, para o sublime.
César
Mais uma vez, brilhantes colocações.
Parabéns a você e a Yara!
Lembrei-me até do Dexter, que sublimou o instinto assassino para livrar o mundo só dos maus! Muito boa a comparação! Mas é um talento que julgo destinado só aos escolhidos! Parabéns como sempre, doutor!
Luiza Prado