Este texto foi publicado há 4 anos. Mas um fato muito especial me fez republica-lo hoje, 18/10/22. Peço aos meus leitores a paciência de lê-lo ou relê-lo.
“Dr. Leão, favor comparecer à sala de Politraumatizados.” “Atenção Dr. Leão, Politraumatizados.”
Este tipo de chamado sempre ecoou nos corredores do Hospital João XXIII, de BH, e é muito comum em Hospitais especializados em trauma. Perdi as contas de chamadas iguais a essa nos 37 anos que ali tive o privilégio de aprender sempre e, com esse aprendizado, ajudar alguém necessitado.
Há exatos 34 anos, deixei a sala dos médicos do “João” para atender o chamado da Isaura, tradicional telefonista da voz firme que conclamava e direcionava os doutores para a lida. Chego ao Poli e encontro Asmir, um rapazinho de 16 anos, com 40% do seu corpo queimado por acidente doméstico. Chorava de dor.
Queimadura é o quadro mais aterrorizante da medicina de urgência e nessa extensão, um dos mais graves da cirurgia plástica especializada.
Asmir não desgrudava sua mão direita ilesa da mão de D. Áurea. Chamou-me atenção a serenidade daquela senhora. Muito embora com o fácies tenso e apreensivo, D. Áurea transmitia ao filho uma segurança e uma paz que transcendia o meu entendimento naquele momento. Essa mulher marcou-me indelevelmente quando, ao despedir-se do filho que entraria para o Bloco Cirúrgico comigo, pronunciou duas frases que hão de permanecer vivas no meu coração e mente até a eternidade. “A força do meu amor por você não o deixará sofrer, meu filho.” “Doutor, o Senhor está contigo”.
Foram 2 meses de internação. 20 dias de CTI por complicações pulmonares e renais. 14 cirurgias. E aquelas duas frases de tons vivíssimos davam-me uma força inexplicável. Nós, crentes em Deus, quando não nos restam técnicas, táticas e medicamentos, sempre esperamos por um milagre que é a materialização do que parecia impossível e está ancorado na fé. Esta mesma fé que sobrava em D. Áurea e que me contagiava irreversivelmente. Foram tantos e tantos pacientes iguais ao Asmir mas nenhum deles com essa força inexplicável.
Durante todos os dias de sua internação, lá estava aquela senhora franzina, de olhar sereno e semblante que transmitia paz, confiança e, sobretudo, esperança. Via o filho de longe. Mas não importava. A força do amor é inexplicável.
No dia da alta, recebi um abraço igualmente inexplicável. Há 38 anos recebo dois telefonemas de D. Áurea. 4 de março, meu aniversário e 18 de outubro, Dia do Médico. O de hoje, 18/10/22, inspirou-me a publicar novamente este texto sobre esta mulher extraordinária, de voz tênue, lúcida, orientada no tempo e espaço apesar dos seus lindos 98 anos.
Após me desejar os melhores votos, D. Áurea esqueceu a cerimônia e me fez um pedido inesperado. “Doutor, não voto desde os 76 anos. Mas se o senhor puder vote no Bolsonaro. Ele é um homem tão bom quanto o senhor”.
São fatos como esse que fazem nossa Medicina valer a pena, muito embora tão aviltada e desrespeitada. Ser médico é uma opção de vida que se vive 24 horas por dia e que se inicia ato contínuo aquele extraordinário juramento saído da Ilha de Cós e que todos nos obrigamos, desde o século V a.C.
Com essa história fica a minha homenagem a todos os colegas desse verdadeiro sacerdócio, em especial à minha filha Luiza que, certamente, nunca se esquecerá que “Não é o diploma médico, mas a qualidade humana, o decisivo”. Carl Gustav Jung.
Eu jamais a decepcionarei em seu pedido, D. Aurea! Um beijo.
Feliz Dia dos Médicos!