A Ditadura dos “Pets”

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Sem pedir licença e, pior, com a complacência de seus donos, cães e outro “pets” invadem nossos espaços sem cerimônia como se fossem suas propriedades.

Se alguém me contasse não acreditaria. Mas sou eu o protagonista vivendo, neste exato momento em que escrevo, uma cena felliniana. Estou sentado no assento 1B, ao lado de Thaïs no 1A, com as perninhas bem esticadas. E o Airbus da Latam em pleno processo de embarque, ainda em solo paulistano. Vamos pra Buenos Aires, onde darei aula e farei uma demonstração ao vivo de um transplante de barba, num Congresso que começa amanhã.

E tá que entra gente e a 1C desocupada. E eu em prece solicitando aos céus que assim permanecesse. Mais espaço. Mais conforto. Eis que de repente, não mais que de repente, apesar das orações, surge uma jovem senhora com um cachorro de porte médio, branco, pelo curto, emburrado, cara de poucos amigos e na coleira. Isso mesmo. Na coleira. Não estava naquela caixa que estamos acostumados a ver. Estava solto.

Sentou-se ao meu lado. Portenha, pelo idioma em que conversava com o pet. Retirou a coleira. Colocou o animal no colo cujo focinho gelado roçava meu braço direito. Thaïs, atônita, olhou pra mim e murmurou: “Impressionante! Você atrai essas coisas”.

Um parênteses: Não gosto de bicho. Eu gosto de gente. Não gosto do contato imediato com qualquer animal. Não é exatamente medo, mas não gosto deles perto de mim, confesso. E a impressão que me passam é que eles entendem o que sinto e resolvem pagar na mesma moeda. Não gostam de mim também e eu não posso reclamar. Sei admirar um belo cão, um imponente cavalo, uma touro premiado, os felinos de uma maneira geral e por aí vai. Fico indignado com quem os maltrata. O fato d’eu preferi-los bem longe de mim não significa que os deseje mal.

Chamei a comissária. Perguntei se aquele enredo de Fellini teria um fim. Ela me disse que era lei e que, doravante, era permitido sim, animais no colinho de suas mães ou papais. Pedi que me trouxesse a lei. Queria lê-la. Já pensei logo em Gilmar Mendes e aquela trupe. Alguém que mantém José Dirceu solto seria capaz de permitir que “dogs” lambessem seus vizinhos de assento mesmo que estes tivessem asco dessas insuportáveis carícias. Enquanto a aeromoça (meio antigo, né? Hoje é comissária) procurava a lei, acionei o Google e nada havia a este respeito. Volta a comissária. Pede mil desculpas dizendo que, realmente, a lei não existe. Isso era uma permissão da Latam de acordo com os seus regimentos e estatutos internos. Aproximou-se um pouco mais de mim e no melhor estilo “em off” confessou que as queixas sobre o fato se avolumam a cada dia. Que se crie então voos “Estilo Safari” para os amantes em dividir seus espaços com esses novos “serezinhos humanos”. Pronto! O comércio de “pets” vai me recomendar ao Nobel das boas idéias.

Não sou obrigado a viajar ao lado de animais. Thais, pra contemporizar, pediu-me para trocar de lugar. Ao que sentou ao lado da fera, começou a espirrar e iniciar um processo alérgico aos pelos que o animal soltava a olhos vistos. Resumo da ópera. Aumentei um pouco o tom da voz para o nível 7 numa escala de 0 a 10. Com diplomacia e educação mas com retórica firme, falei com a propriedade de médico, exigi meus direitos de consumidor e não aceitei esse dano moral a que estávamos sendo submetidos. Um passageiro solidário ofereceu-se para trocar de lugar com a impassível argentina que, em hora nenhuma, comoveu-se com a situação. Não teríamos saído de São Paulo se a alma caridosa não tivesse se manifestado.

Preparado para as críticas, acho, pessoalmente, que essa história de convivência com animais, especialmente cães, está fugindo do mínimo exigido para uma sanidade mental aceitável. Como médico, não me furto reconhecer os benefícios que estes animais trazem aos seus donos, especialmente aqueles mais solitários, depressivos, tímidos ou simplesmente apaixonados por bichos. Discuto aqui a imposição que muitos fazem em relação aos que pensam diferente, como se essa convivência fosse uma obrigação. Clínicas de Cirurgia Estética para animais, embora difícil de acreditar, não se compara aos consultórios de Psicologia Animal, que crescem exponencialmente no mundo. Psicólogo pra cachorro, meus amigos, é pródromo de um traço psicológico que começa a afetar irreversivelmente as mentes humanas subjugadas ao apelo comercial nefasto, desmedido e insuportável. E nós, temos que aguentar? É mole?

 

*Carlos Eduardo Leão é médico e cronista

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